quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Capítulo 2



A casa 4

Saindo da estação São Francisco, que me levava, então, até a rua São Francisco, ainda sentia as mesmas emoções e o desejo enorme de poder entrar na vila onde morei, por muitos e muitos anos.
O comércio não é mais o mesmo e tampouco prosperou. A rua ainda conserva muitas casas do tempo em que havia cajás, sapotis visitados por morcegos que comiam as frutas antes de nós. À noite, o assobio do guarda-noturno como um sinal de que algo poderia estar errado, fazia-me estremecer na cama, que dividia com minha irmã mais velha. O medo era tão grande que acaba fazendo xixi ali mesmo. Quando tinha coragem, ia até o quarto de minha mãe, fazia xixi num penico que ela conservava debaixo da cama. Algumas vezes, o penico estava cheio e eu acabava molhando minha bunda. Era uma sensação horrível, mas ainda assim seria melhor do que abrir a porta do quarto, atravessar o corredor para ir ao banheiro e estar sujeita a ver algum fantasma. Sim, a minha casa quatro era mal-assombrada. Havia vultos, barulhos e outras coisas que nós nunca entendemos por que aconteciam. Minha mãe, volta e meia , chamava um padre para benzer a casa, mas nada adiantava.
O fato de minha mãe levar o penico para o quarto dela, talvez significasse que ela também tinha medo, sem nunca ter dito a algum de nós. Enfim, estava revivendo toda a minha infância e a trajetória dos momentos difíceis, como, por exemplo, a ditadura, fato que nos levou a praticamente dois dias de ameaças constantes pelo Dops., antes, claro, de nos observar por aproximadamente quinze dias.
Mais tarde abordarei esse assunto com cuidado, para não me afastar da realidade da época.
Cheguei até o portão da vila e suspirei lentamente, observando a casa número quatro. Nada mudou, a não ser o portão eletrônico que dificultaria minha entrada, já que possivelmente não havia mais ninguém daquela época.
No entanto, ainda com um resquício de esperança, achava que poderia encontrar Neilda, uma negra, que, lá longe, fora "adotada" pela Dona Edília e Seu João que tinham quatro filhos: Joana, Paulinho, Sebatião, apelidado por Bat, porque batia muito em todos os irmãos, e o mais novo, Serginho.
A convivência com eles não era fácil. Eu tinha medo do Bat. Quando lanchavam, Bat media o seu pedaço de pão com o dos irmãos. Se algum deles estivesse comendo um pouco mais, era suficiente para uma briga, sem precedentes. Além disso, ele se pendurava na escada que dava para o segundo andar e, quando nós estávamos esperando que ele ligasse a televisão, ouvíamos um grito como se fosse o do Tarzã e lá estava Bat, pendurado na escada, molhado, com uma toalha amarrada à cintura. Assim que acabava de imitar o tarzã, arrancava a toalha e caía completamente pelado na nossa frente. Naquela época, eu pensava como ele podia ter "um piru" tão grande? Apavorada, corria para casa, mas no dia seguinte lá estava eu de novo para tentar ver National Kid ou qualquer outra coisa que me tirasse o tédio de uma vida tão sem cores.
Muitas vezes não nos deixavam entrar na casa deles pelo simples fato de naquele momento não termos tomado banho. Eu, minha irmã Zita e meu irmão Berto éramos portugueses e eles faziam o que queriam conosco. Chamavam-nos de "galegos", "porcos" e tínhamos um tempo determinado para assistir à televisão. Bastava que déssemos um pio e lá estávamos, sem entender absolutamente nada, fora da casa. Seguíamos para nossa, em silêncio e com medo da reação de minha mãe, que nos proibia de irmos à casa de algum vizinho implorar para vermos televisão. Acabávamos escutando rádio com meu pai, já deitado, porém atentos ao programa "Incrível, Fantástico, Extraordinário!"
Para quem já vivia borrado de medo de fantasmas, nos dias em que nós ouvíamos atentamente as histórias de puro terror, a noite era perdida. Nenhum dos três dormia e eu sequer fechava os olhos, esperando que uma alma penada, um vulto preto, com sorriso dourado me levasse com ela. Essa foi a minha primeira visão lá. E aí era certo que faria xixi de novo na cama.
Mas o meu foco era mesmo ter a oportunidade de entrar para ver minha casa, a casa quatro, apesar do pavor que passei lá durante todos os anos.
Resolvi, então, apertar o botão da casa 1, onde supostamente eu encontraria Neilda, já que depois que a família de Dona Edília resolveu sair de lá, para que cada um seguisse seu destino, e, nessa época, Seu João já havia falecido, eles deixaram a casa para ela, que acabou formando uma família.
Alguém apareceu e eu perguntei se poderia me chamar a Dona da casa. Então, para meu descontentamento, soube que Neilda se fora de lá há muito tempo. Os donos da casa eram outros.
Somente me restava a coragem de interfonar para a casa quatro para ver se alguém, depois que eu me explicasse, me abrisse o portão para poder contemplá-la e talvez chorar um pouco mais o choro que eu não fiz, quando lá morei.
Enfim, apareceu uma jovem moça grávida que me disse morar há pouco tempo e não abriria o portão para mim. Simplesmente virou as costas e nem se despediu. Fiquei com a sensação de que ela não acreditara em ums só palavra do que lhe dissera.
Muda, observei sua atitude e pensei: "Como ela poderia ter a coragem de me negar um desejo tão profundo de minha alma ?
Ela se retirou, eu fiquei olhando a vila e escutando minha mãe chamar minha irmã para entrar, porque já era tarde. Escutei também os bons bailes da casa cinco e as máquinas de costura que todos usavam para bordar uniformes das forças armadas, roupas de cama e outros.
Vi a velha portuguesa, Dona Aurora, sentada no portão da casa seis e senti o cheiro de arruda que ela usava no azeite para rezar a cada um de nós que precisasse, mas também o cheiro desagradável que vinha dela por não tomar banho. Ficava dias sem entrar no chuveiro e se retirava para o quarto, todos os dias, às cinco da tarde, fizesse calor ou frio. A filha, Odete, era uma mulher bonita e, supõem-se que, antes mesmo de o marido morrer, ela já tinha um caso com Seu Lais, com quem de fato viveu, após a morte do marido.
Vi o Carlinhos, neto de Dona Aurora, entrando na vila, vestido de branco e com uma maleta de médico. Ele nunca estudara medicina, mas acho que ele pensava que enganava a todos. Minha irmã mais velha chegou até a namorá-lo, porém quando descobriu que ele mentia, terminou o breve romance.
As janelas de minha casa estavam abertas e eram as mesmas. Fiquei ali parada, sozinha, deserta e ofendida por não poder entrar, ver e sentir não só as tristezas da época, mas também a alegria e a esperança de uma criança que só queria ser feliz.
Fazendo o caminho de volta, vieram as lembranças do primeiro dia naquela casa.

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